A Rua Mouzinho da Silveira era a grande rua da Baixa Histórica da cidade do Porto. Era a rua mais larga. Dizia-se inclusivamente que teria sido possivelmente o Marquês de Pombal que a tinha mandado fazer, dada a reconstrução que ele fez em Lisboa. Era uma rua que tinha preferencialmente comerciantes de ferro, tinha comércio de produtos para a agricultura, casas de sementes como era o nosso caso, armazéns de mercearia, alguns cafés, mas não muitos. Um, dois cafés, não existia mais.
A Rua das Flores era pela sua antiguidade das ruas mais estreitas, mas que tinha uma vida muito, muito curiosa dado o comércio que aí se praticava, que era acima de tudo onde se localizavam as grandes ourivesarias e joalharias desta cidade. Falar da Rua das Flores e não falar de um Ferreira Joalheiros ou não falar de um Pedro Baptista que era de facto um homem com uma sensibilidade e de uma qualidade ímpar, que ainda hoje seria um homem actual, não falar dos livreiros, os alfarrabistas era esquecer de facto a Rua das Flores e também da Misericórdia. Essa era de facto uma rua com um significado muito especial.
Ninguém ligava a ser estreita, porque a rua alargava-se pela qualidade do seu comércio e pela qualidade das pessoas que a utilizavam. Era uma rua de malhas e miudezas onde todas as senhoras, nem que fosse para comprar um botão, uma toalha, não deixavam de aqui vir. Era também uma das ruas muito procuradas num sábado à tarde e todos os dias. Eu lembro-me também desde tenra idade que vínhamos para aqui muitas vezes, mesmo miúdos, até porque gostávamos de utilizar o transporte que o meu pai nos podia proporcionar.
Eu já fui director da Associação dos Comerciantes do Porto e uma das teorias que eu defendia é que nós devíamos ter ruas temáticas. Antigamente, sem haver essa preocupação, elas existiam. Se se verificar a quantidade de ourivesarias que ainda hoje se conseguem manter na Rua das Flores, vem-se a demonstrar o quanto é que aquela rua não era procurada pelas ourivesarias.
A Rua Mouzinho da Silveira chegou a ter cinco ou seis casas de sementes.
Não havia a facilidade de chegar à província como se chamava, na altura, com a mesma facilidade com que hoje se chega num quarto de hora a Penafiel ou 20 minutos não sei onde. Havia os recoveiros, eram os caminhos-de-ferro, as camionetas que se pagavam e faziam as distribuições. Como não era na Avenida dos Aliados que se consumia sementes e como tudo o que nós vendíamos era consumido, produzido e semeado na província, o local ideal para uma firma desta natureza era a proximidade com a Estação de São Bento. Em São Bento, faziam-se os despachos nos caminhos-de-ferro e ao lado de São Bento havia os escritórios dos recoveiros. Era ali que se entregava. Do outro lado, paravam muitas camionetas. Era ali que se faziam os despachos das camionetas e, portanto, era quase como uma zona estratégica, sob o ponto de vista, do que hoje nós chamaríamos logística.
Não havia o problema da concorrência. Eu julgo que a proximidade de lojas que têm como produtos importantes os mesmos que nós não me parece que seja qualquer coisa que venha trazer problemas, pelo contrário. Não era uma concorrência desleal, quase que diria que era uma concorrência corporativa, no bom sentido da palavra.
Um exemplo de quanto era salutar foi o meu pai ver uma peça que gostou muito numa ourivesaria, mas não era a ourivesaria com quem ele tinha maior permeabilidade, nem onde estavam os maiores amigos. Recordo ir pequenino com o meu pai ter com o senhor Pedro Baptista e dizer:
- “Ouve lá, eu vi ali na ourivesaria esta peça, mas aquilo está por um preço um bocado alto. Tu não consegues aquilo por um preço mais baixo?”
- “Eu trato disso!”.
E ele próprio saía com o meu pai, ia lá e dizia:
- “Fulano gostou desta peça. Vê lá qual é o preço que podes fazer. Faz para ele o preço que farias para mim.”
Eu recordo-me muitas vezes do meu pai. Era um homem que para mim estará sempre presente. De vez em quando, estou comigo a falar com ele:
- O que é que tu farias se estivesses aqui?
Hoje em dia a concorrência está desvirtuada. A concorrência hoje pensa que são inimigos. Naquela altura, fazia com que as pessoas se deslocassem àquela rua muito mais facilmente, porque sabiam que ali num lado ou noutro iriam encontrar com certeza aquilo que pretendiam. Agora, quando as coisas estão muito dispersas, as pessoas não sabem para onde ir. Qual é o grande segredo dos hipermercados ou das grandes superfícies, se não é efectivamente terem a sua constituição feita por temas. Vai-se a um centro comercial ou pode-se ir ao hipermercado comprar feijão mas também pode vir de lá com uma jóia que custou milhares de contos. Isto aqui fazia-se pelas ruas, era a Rua São João, a Rua Mouzinho da Silveira, a Rua das Flores, a Praça do Infante, a Rua Nova da Alfândega, etc. onde as pessoas, em pouco tempo circulavam e conseguiam encontrar tudo aquilo que pretendiam. Isso, hoje, infelizmente, não existe.